P – Decerto não se importa que conversemos um pouco sobre o seu trabalho. Aliás, era sobre isso que estava a dissertar sozinho…
R – Pobre dissertação solitária, monólogo sem ouvintes, solilóquio destinado ao olvido mais absoluto… É quase um prazer solitário como outros, quase uma espécie de masturbação mental. Mas também uma forma de pensar em voz alta, e uma possível modesta partilha do pouco que há para partilhar. É como grafitar paredes. Quem quiser que leia mais tarde. Ou que apague, se preferir.
Quanto ao meu trabalho, não vejo que interesse… Bem, ia ser desonesto, e dizer que não tem nenhum interesse. Claro que tem. Não existe nenhum assunto totalmente desinteressante. Estamos sempre a entrar em contradições, mas acho que essa dialéctica tem, pelo menos, o valor de espevitar, de despertar, de consciencializar. Dar um pontapé numa pedra, e fazer disso o tema de um ensaio, não tem mal nenhum, antes pelo contrário. O pontapé já está dado, não se pode evitar. Mas um pontapé numa pedra que dá origem a um ensaio literário, se esse ensaio for obra de valor, passa a ser um acontecimento importante. E não me venha dizer que, num caso destes iria prevalecer a forma sobre o conteúdo. Em tal caso, um discurso oco não teria o mínimo valor, ponto final, parágrafo. Pode o conteúdo ser, na aparência, um esgravatar de óbvias impertinências…
(e agora, se não se importa, acompanhe-me ao restaurante, que vamos jantar. Pago eu.)
22:00
R – Que tal lhe pareceu o jantar? Gostou?
P – Pois não estava mal. Tenho andado a abusar da carne e a esquecer o peixe. Mas hoje…
R – Eu também. Vamos ao que importa, se não se importa. Ah! Ah! Divirto-me com estes jogos. E você? Não vê que quase tudo se importa?...
Deixe-me voltar ao assunto dos pontapés nas pedras. Vê como agora já tudo passou ao plural? Passamos a generalizar. Acho que a coisa promete. Está a adquirir importância. Quem sabe se, estando o pobre calhau num sítio tão exposto, não terá já sofrido o impacto de patas mais ilustres que as nossas… Quanto vocabulário de elevado calibre não terá suscitado a sua inesperada presença?
Uma pedra, por mais tosca que seja, é uma testemunha do nosso passado. Podem ter decorrido centenas de milhões de anos desde que começou a estruturar-se a formação de que fazia parte.
Quer uma lição de geologia? Não se esqueça de que é a ciência que trata do estudo das pedras. Por isso, tome atenção. Se esta pedra apresenta uma estrutura laminar, é provavelmente um xisto. Na nossa zona existem xistos que são das rochas mais antigas que é possível encontrar na Península Ibérica. E olhe que esta península é um dos sub-continentes de maior antiguidade.
Assim como os calhaus rolados de natureza quartzítica, tão abundantes por aqui, e de cuja fragmentação resultam as enormes quantidades de areia existentes no curso inferior do Tejo, tanto no leito actual do rio como em leitos fósseis que o marginam. Mas note que essas areias não são exclusivamente quartzíticas. O Tejo, desde o seu nascimento na serra de Albarracín ou nos Montes Universales, atravessa terrenos de diversa natureza. A montante, as caliças da meseta, de onde provém os aluviões do curso médio, Toledo, Talavera. Mais abaixo, uma barreira se interpôs, a custo vencida. Cortada ao meio a serra de Miravete, passa aos granitos e xistos da Extremadura, em parte escondidos por esse imenso mar interior que é a barragem de Alcántara.
O Tejo, tal como o Guadiana, e outros, teve de vencer as barreiras quartzíticas que se interpuseram no seu curso. Veja-se as Portas de Ródão. As serras que se encontram a um lado e a outro são uma formação única, massas rochosas em ascensão, empurradas para cima pelas forças colossais da orogenia hercínica (?).
Mas o rio tinha de continuar a correr. Com maior dificuldade, é certo. É até possível que, durante muitos milhões de anos, se tenham formado lagos imensos a montante dessas formações ascendentes. As bacias de acumulação, agora já bastante erosionadas, aí estão para o provar.
No entanto, a rocha, de tão dura, é frágil. Rompe-se, estala, solta-se em fragmentos menores, a custo arrancados do seu lugar, e logo paulatinamente arrastados para baixo, na direcção do mar, que chama a si todos os rios, e todas as coisas que estes possam levar consigo. É lícito imaginar cascatas espectaculares, e mesmo cataratas, nestes locais onde agora há lagos tranquilos de humana confecção, que já não ocultam senão uns rápidos ou pequenas cachoeiras anteriores às barragens.
Está a gostar? Veja como uma pedra, mesmo hipotética, dá para tanto assunto. E mal começámos…
Continuamos noutro dia.