quarta-feira, 30 de outubro de 2013

The invisible hand is tied by invisible strings


Foto: http://duted.files.wordpress.com/2011/10/invis98k.gif


Escolas privadas, possuídas, financiadas e patrocinadas por entidades privadas, tenderão a ensinar as ideias liberais e ultraliberais que mais convêm aos seus donos e patronos, em detrimento de quaisquer correntes que se oponham a essas ideias ou que delas se afastem o suficiente para as pôr em causa. Objectando a esta acusação de falta de pluralismo, pode argumentar-se que todos são livres de se constituir em associações ou entidades promotoras de um ensino alternativo àquele, eventualmente mais pluralista. Mas tal argumento é falso, ao ignorar uma premissa fundamental, que é a capacidade económica necessária para criar e manter sistemas e instituições dedicadas ao ensino, uma actividade que dificilmente é rentável por si própria, a não ser que os alunos tenham capacidade económica para financiar os respectivos custos. A desigualdade de capacidades económicas resulta sempre em desigualdade de oportunidades.

A médio e longo termo, a filosofia económica liberal ou ultraliberal acabará por prevalecer sobre qualquer outra.

Durante algum tempo, pareceu que o papel dos estados podia ser também o de corrigir essas desigualdades quando injustas (alguma desigualdade é necessária para manter a dinâmica social), usando para isso os recursos que a Sociedade lhes fornece. Mas agora querem convencer-nos de que os sistemas se auto-regulam e que, se deixados entregues a si próprios, daí resultarão a felicidade e a riqueza universais. A economia não precisa, dizem eles, de ter as pessoas como objectivo. As pessoas só beneficiarão, dizem eles, de não tentarem interferir no curso dos acontecimentos, já que toda a interferência, dizem sempre eles, retira eficiência ao sistema.

Até aqui, não disse senão banalidades. Mas agora vejamos: o sistema já está praticamente implantado. Ainda será possível voltar atrás?




terça-feira, 29 de outubro de 2013

Quem foge é valente?






"As decisões judiciais não devem provocar alarme social."

Isto parece-me do mais elementar bom-senso, mas posso estar errado. Podem até existir normas que vedem ao sistema judicial a preocupação com o impacto social das suas decisões, como forma de garantir a sua independência e de o tornar imune a pressões ou influências vindas do exterior.

Seria a aplicação da Lei da forma mais pura e asséptica possível.

Mas a Lei tanto pode ter origem humana como "extraterrestre".

Sabendo que a maioria dos homens não acreditava nos outros homens, os que criaram as leis no passado invocaram então para elas uma autoria divina (extraterrestre, portanto) como  forma de as credibilizar. Invocaram também mandato divino para a sua aplicação, como é óbvio. A outra forma de tornar a Lei aplicável era pelo terror puro e simples, mas essa foi caindo, de forma gradual (e em muitos casos aparente, já que as formas de coacção podem ser bastante sofisticadas) em desuso.

Uma lei de autoria assumidamente humana tem necessariamente em conta os interesses de quem a concebe. Numa oligarquia ditatorial, os interesses particulares são às vezes disfarçados como gerais, mas, em democracia, a Lei não pode estar senão ao serviço da Sociedade no seu todo, ao ter sido criada para resolver os seus conflitos internos  e dos seus membros individual ou colectivamente, sem causar prejuízo maior do que aquele causado pelos próprios conflitos.

(Não tenho competência para avançar mais nos conceitos próprios da Lei e do Direito. Em vez de uma vasta formação académica, oriento-me principalmente pela noção de bom-senso, que muitos dirão não passar de uma treta. Mas é o que me esforço por ter e manter, já que mais não alcancei.)

Com base apenas naquilo que é veiculado pela informação mediática e "online", fico com a impressão (repito "impressão") de que a condenação de um guarda por ter ferido mortalmente a criança que seguia no interior de um veículo em fuga pode não ter sido, na óptica da tentativa de teorização que fiz acima, uma boa decisão. Pode até ter sido correcta do ponto de vista formal e jurídico. Os juízes não fazem a Lei, apenas estão obrigados a aplicá-la com rigor e independência. Quando digo que a decisão pode não ter sido a melhor, tenho em mente que ela resulta ao mesmo tempo da Lei e de quem a aplicou, mas fundamentalmente resulta da própria Lei, no pressuposto de que é aplicada com independência e rigor.

Ou seja: se considero que a decisão pode não ter sido a melhor, por causar maior dano à Sociedade do que os conflitos que pretende resolver (alguns estragos estão fora de questão, por serem irreparáveis), é porque acho que uma grande parte, talvez mesmo uma parte muito grande da Sociedade considera que a decisão foi injusta. E uma decisão tida como injusta sempre ajuda a descredibilizar a Lei, ou a Justiça, ou ambas. 


Aos olhos do cidadão comum, o guarda disparou contra um veículo que seguia em fuga, em desobediência flagrante à legítima ordem de parar, tendo usado os meios de que dispunha para conseguir a sua imobilização e tomado a precaução de causar o menor dano possível. Foi noticiado que o tribunal agravou (aliás com o voto contra e vencido do seu presidente) a classificação do crime para "dolo eventual" porque concluiu que o arguido teve a noção de que a sua acção comportava o risco de suceder algo da natureza daquilo que sucedeu, isto é, sabia que, disparando contra o veículo, podia ferir ou mesmo matar alguém, como veio efectivamente a acontecer. 

Para que a decisão tomada o tivesse sido, decerto foram ponderados não só os factos ocorridos como também as circunstâncias em que eles se deram, bem ainda como as condutas de todos os intervenientes naquele momento.

Ora o que a Sociedade sabe, ou julga saber, é que às autoridades policiais são fornecidas armas com poder letal e que essas armas, precisamente por serem letais, servem como instrumento da acção dos seus portadores, permitindo-lhes dispor de um poder dissuasor suficiente para interceptar e deter os criminosos ou suspeitos. De nada serviria o poder letal das armas se não existisse alguma vez a possibilidade de ele funcionar, isto é, de atingir e ferir alguém (mesmo mortalmente, pois não é, nem pode ser absoluto o controle sobre os efeitos dos disparos). Ora precisamente em razão da perigosidade de tais meios, existem normas quanto ao seu uso. Não sei exactamente quais são nem em que termos estão formuladas, mas quero crer que nem poderia ser de outra maneira.

Se existe (se é que existe) uma norma a determinar que uma arma não pode ser usada quando exista o risco de atingir alguém, o cidadão comum só pode perguntar "Para que serve então a arma?". Se existe (se é que existe) uma norma que impede os agentes da autoridade de usarem as armas a não ser para legítima defesa, isto é, quando a sua própria integridade física esteja em risco, então o criminoso, conhecendo-a, não tem senão que fugir e não atacar a autoridade, pois dessa forma tem garantida a sua própria integridade. Isto até parece correcto. Não se pode disparar a torto e a direito. Mas que tem de fazer a autoridade policial quando o suspeito intimado a parar foge. Deixá-lo ir, simplesmente, uma vez que, se disparar contra ele (ou, melhor, contra a viatura em que se faz transportar) corre o risco de o ferir, quiçá mortalmente?

Sabemos que estas questões são complexas e exigem ponderada análise por parte de quem tem o poder de decidir sobre elas.

Mas o que transparece deste caso é que um guarda foi condenado por ter, acidentalmente, atingido uma pessoa que seguia no interior de uma viatura em fuga. Embora o ditado afirme que "quem foge é valente", o que o cidadão comum vê aqui é que quem foge é porque não quer ser apanhado. E, se não quer ser apanhado pelas autoridades que o mandam parar (algo a que está obrigado por lei), é porque algo tem a esconder das autoridades. E estas têm, ao que sabemos, não só o direito mas também a obrigação de exercer as tarefas que lhes estão confiadas.

Pode ter-me escapado algum aspecto essencial, mas fiquei com a impressão, comum a muitos ao que parece, de que este caso não está a ir bem. É bom até que ainda não tenha acabado, para que seja ainda possível corrigir o mau rumo que tomou.


E — não menos importante — para que a cidadania possa ter a certeza de que a Lei é uma emanação sua e, assim, sentir que está do lado dela.


Voltar ao princípio




« Princípios fundamentais

Artigo 1.o
... é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. »



Onde está a soberania?
Onde está a dignidade?
Onde está a vontade popular?
Estamos a construir ou a destruir?
Sociedade livre?
Justiça?
Solidariedade?

Existe mesmo um país ao qual possa estar a referir-se aquele artigo 1º?





sábado, 19 de outubro de 2013

A barragem





Que a Terra é de todos é um facto. Nascer num hemisfério ou noutro é uma questão de sorte. Ninguém pode ser condenado a morrer de fome por ter tido o azar de nascer no sítio errado, aquele onde não há nada para comer.

Logo, todo aquele que tem fome na terra onde nasceu tem o direito de procurar sustento noutro lugar.

Por outro lado, os que tiveram a sorte de nascer em terras férteis, não se limitam a colher o que a terra dá. São muito raros (se é que existem) os édenes capazes de suportar populações que se dediquem apenas à recolecção, a não ser que se trate de comunidades muito pouco numerosas e que, ainda assim, a Natureza seja bastante generosa.

Os peixes tendem a esquivar-se, a caça é bastante trabalhosa e comer apenas frutos é pobre dieta. Satisfazer a mais básica das necessidades, a de nutrir o organismo para que este possa continuar a viver exige trabalho, por vezes muito trabalho. Depois, satisfazer as necessidades seguintes (satisfeita uma, logo aparece outra) exige cada vez mais trabalho e, sobretudo, organização.

Tendo embora a obrigação de não negar oportunidades ao seu semelhante que chega faminto de outras terras, o residente não é obrigado a ceder tudo aquilo que lhe custou esforço para conseguir. Nem isso é conveniente para nenhum dos dois. Se aquele que chega, cego de fome e de ignorância, acabar por destruir o que o residente criou, ambos acabarão por morrer de fome, já que a subsistência não depende dos bens disponíveis no momento, mas da capacidade de continuar a produzi-los.

Há que pensar nisto quando se fala em abolir todas a fronteiras e entraves às migrações. Qualquer civilização acaba quando invadida por hordas de esfomeados e sem que ninguém fique a ganhar com isso.


A queda de uma barreira é sempre um acontecimento catastrófico. Além de catastrófico é inevitável. A ignorância deste simples facto é que explica a sua existência. Não existiriam barreiras se aqueles que as erguem soubessem, com antecedência, que as barreiras vão cair um dia, com pesadas consequências para todos quando isso acontecer.

As barreiras são como barragens num rio que não deixam passar nenhuma água. À medida que o nível da água sobe e ameaça galgar, acrescenta-se mais parede. Mas um dia a pressão é tanta que a barragem começa a abrir brechas e acaba por rebentar, destruindo tudo na enxurrada.

(E até pode acontecer, por incrível que pareça, que a água galgue a barragem sem a destruir, impulsionada por algo capaz de a empurrar, como aconteceu em 1963 no vale de Vajont, Itália, quando um deslizamento de terras causou uma onda gigante na água represada. Aldeias foram arrasadas e 2000 pessoas morreram. Mas a barragem, apesar de praticamente intacta, nunca mais foi utilizada... É um monumento à imprudência humana.)

Tais calamidades nunca poderiam acontecer num rio sem barragens.

Ainda assim, poderiam ocorrer enchentes estacionais. Sim, sempre ocorrem. Mas são previsíveis e até, como sucedia no Nilo antigo, podem ser a fonte de toda a fertilidade.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Cinco de Outubro


A supressão do feriado de 5 de Outubro, no qual se comemorava a implantação da República, veio "destapar" uma outra efeméride da mesma data. Remetia-se um dos actos mais importantes da fundação da nacionalidade (o reconhecimento por parte daqueles de quem nos separávamos) lá para o remoto ano de 1143, sem precisar o dia exacto.

Dirão alguns que "ainda bem", pois o que não faltam são repúblicas que tanto vêm como vão e a identidade nacional é só uma que interessa conservar.

Não discordando de parte da justificação, desconfio que a maioria dos que dizem isto não são republicanos. E até me atrevo a dizer que, sem perda da identidade nacional, a Monarquia foi e a República veio. Não sei se a República é para ficar, não faço ideia do que, se não ficar, virá depois dela, mas, por favor, deixem lá estar a Monarquia onde está, que está bem. 


Respeite-se-lhe o descanso. Eterno seja.