domingo, 26 de novembro de 2006

Travessias do Tejo

         O nome do blog é “da Beira ao Alentejo”, o que, desde logo, supõe e praticamente implica uma travessia do Tejo, motivo para o título da secção seguinte. Como subtítulo ou descrição, “impressões de um migrante”. Tem tudo a ver com mudanças, deslocações e travessias.
         Mas eu queria falar de verdadeiras travessias, ou atravessamentos, do Tejo, sem qualquer dimensão épica, visão poética ou carácter biográfico. Simples episódios, quase faits divers.
         TRAVESSIAS DO TEJO
         (com câmara-de-ar)
        
Certo dia, quando eu andava na telescola, a professora (monitora era realmente o seu título), que era pouco mais velha do que a maioria dos alunos, e gostava, como se compreende, de passar, sempre que possível, algum tempo connosco fora das quatro paredes e longe do televisor a preto e branco, resolveu planear um piquenique à beira do Tejo. Levou-se farnel e passou-se um dia óptimo, ali um pouco a montante da ponte. Havia areia, sombras de choupos e amieiros, muita água. Havia, sobretudo, muita juventude, sangue na guelra, e também alguma malandrice à mistura. Jogou-se à bola e às cartas, houve corridas, e quem sabia nadar deu umas boas braçadas, comeu-se o farnel e acho que até se bailou e namorou. Nada que não viesse a propósito, num dia para recordar com uma pontinha de saudade.
         O episódio da travessia, como disse não mais que um fait divers, foi algo de aventura irresponsável, mas também compreensível aos dezasseis ou dezassete anos de idade. Alguém levou uma câmara-de-ar, grande, das de camião. Deu uma excelente bóia e não fui o único a atravessar o rio deitado nela. É que nem me preocupou o simples facto de não saber nadar, numa zona com cerca de quinze metros de profundidade e uns cento e cinquenta de largura! Tudo correu bem, afinal, e ainda aqui estamos para contar o episódio, pois a câmara-de-ar velha nunca esvaziou. Estava em bom estado.

         Não me recordo bem de quem a levou. Mas só podia ter sido um de dois irmãos cujo pai tinha um negócio de madeiras, exploração florestal, e possuía camiões e tractores. Eram os dois meus colegas nessa escola. Recordo-me deles como excelentes rapazes e bons amigos. Agora é o que resta deles: a recordação. Ambos morreram, no auge da juventude, quando já tinham assumido as rédeas do negócio da família. O mais velho dos dois (tinham cerca de um ano de diferença) morreu no trabalho. Caiu-lhe em cima a árvore que nesse momento cortava. Passado algum tempo, foi-se o outro, num acidente de carro.
         Era para contar apenas o episódio da câmara-de-ar, mas diz-se que as conversas são como as cerejas… Não se podem evocar factos isolados. Sempre ocorrem (e acorrem) outros.
         TRAVESSIAS DO TEJO
         (com bote, e de pernas para o ar)
         Numa festa de casamento, foi-se de bote até à Quinta do Alamal.
         O episódio é o de uma convidada, já demoradamente solteira, que caiu dentro do bote, quando este chocou na margem, e ficou totalmente de pernas para o ar. Naquele tempo, apesar da moda recente da mini-saia,  pernas de mulheres, pelo menos da idade daquela, não eram coisa muito exposta, ainda menos em tal posição, de modo que ninguém ficou indiferente, nem sequer eu, que era bastante miúdo.

         TRAVESSIAS DO TEJO
         (na barca, porque já não dava pé)
         Há uns anos atrás, podam obter-se nas câmaras municipais umas licenças que permitiam apanhar peixes no rio, com uso de redes. Um vizinho nosso tinha algumas, mais a tal licença, e lá fomos para o Tejo, ali perto de Alvega, uns dois ou três quilómetros a jusante da Barragem de Belver. Éramos uns quantos: o dono das redes, eu, o meu sogro, e mais uns quatro ou cinco sócios. Alguns de nós éramos mais expeditos no manejo das redes ou na captura, à mão, dos peixes refugiados entre as pedras, outros tinham mais jeito para cozinhar uma caldeirada ou assar umas fataças, outros tinham o mérito, menos concreto, mas ainda mais estimável, de ser excelentes companheiros. Éramos um grupo heterogéneo e barulhento, disposto a um belo dia de patuscada.
         A pescaria, naquele local, por via de regra efectuava-se estando fechada a barragem, com o caudal mínimo do rio, o qual, mesmo assim, devido ao mau estado das comportas, era considerável na hora de atravessar a pé.
Aproximamo-nos pela margem esquerda, que é a nossa, e temos de pescar na margem direita, debaixo de uns amieiros e junto a uns antigos muros de pedra ali existentes. Estendem-se uma ou duas redes, os peixes ficam cercados, a maioria esconde-se nos buracos entre as pedras dos muros, mete-se ali a mão e tiram-se os peixes directamente para o saco. O método é trabalhoso e, provavelmente, ilegal, mas garanto que é eficaz e extremamente divertido.
Estávamos nós já com meio saco de belíssimos barbos, quando alguém, mais vigilante, gritou que o nível da água estava a subir muito depressa e a velocidade da corrente a aumentar. Tinham posto as turbinas da barragem a funcionar. Constatámos que sim, que era verdade, mas havia ainda muito peixe para apanhar e, gananciosos,  ficámos mais uns instantes. Claro que, quando tentámos, finalmente, ganhar a nossa margem, já não pudemos. A corrente arrastava-nos, sem que conseguíssemos manter os pés assentes no fundo. De maneira que tivemos de nos deslocar a pé, pela via-férrea, com o saco dos peixes às costas até à estação de Alvega-Ortiga, onde havia um tipo com um bote a quem se pagava pela travessia. Depois de chegar ao outro lado, tivemos que marchar novamente um bom bocado, até chegarmos junto do resto do grupo.
Mas valeu a pena, pois comeu-se e bebeu-se bem. E foi um belo dia, para recordar com saudade e alguma pena, pois o “ambiente”, agora, já não parece tão propício a tais actividades. 
Alguns mudaram de residência, os tempos são outros, as autoridades já são menos tolerantes, o rio está mais poluído, há menos peixe.
Eram bons tempos…
TRAVESSIAS DO TEJO
(na Barca da Amieira)
Uma única vez atravessei o rio nesse local. De noite, numa barca construída de chapa de ferro. Íamos em grupo, com motorizadas, para um baile na Amieira, depois de termos estado noutros em São José das Matas, ou nalguma aldeia próxima. Recordo-me de que a travessia durou pouco, o rio é ali mais estreito, e que a barca baloiçava imenso, com a água quase a roçar a borda, sob uma carga quase no limite.
TRAVESSIAS DO TEJO
(em Toledo, e mais para cima)
Se há cidade envolvida por um rio, essa é Toledo. O rio descreve um meandro enorme, a cidade está numa espécie de península, com ares de promontório num dos lados. O rio cerca, literalmente, esta cidade. Mas parece que a cidade não liga nada ao rio, olha-lhe por cima, na sua ostensiva monumentalidade.
Quando passo com o meu camião por essa zona, às vezes deixo a auto-estrada logo em Talavera. Assim, atravesso o Tejo em Albarreal de Tajo, logo outra vez ao chegar a Toledo, e ainda uma vez mais do lado oposto. E, dependendo do percurso, poderei já ter atravessado junto a Almaraz e à central nuclear. Outras vezes, vou um pouco mais acima e atravesso junto à estação de Algodor. Ou mais acima ainda, em Añover de Tajo, depois de passar à central térmica de Aceca, a tal que teve, há pouco anos, um importante derrame de combustível. Finalmente, para quem vai para o Levante, não vale a pena ir mais acima de Aranjuez. Resta ainda Fuentidueña de Tajo, se vier de Valência para Madrid, ou vice-versa. Daí para montante, mal contacto com o rio. Apenas algum dos seus primeiros afluentes, quase na nascente. E uma placa na estrada EN234 a indicar Albarracín, nome de terra e também de serra onde se diz que o Tejo nasce. Onde nasce também o Guadalaviar, mais tarde Turia, que vai de Teruel a ver o Mediterrâneo em Valência, antigamente por dentro, agora por fora da cidade, entre o porto e El Saler (mas sem água, estranhos rios que há por aqui…).