domingo, 18 de maio de 2008

duas semanas atribuladas





Diz-se que há dias em que não se pode sair de casa.
Eu, que sou um exagerado, vou ainda mais além. Não me contento com os dias. Quero mais. Quero semanas. Por isso rectifico, e afirmo, peremptoriamente:
Há semanas em que não se deve sair de casa!
A semana passada, foi uma dessas.
Sair de casa não foi um erro. Foi, isso sim, uma tremenda falta de sorte. Esqueci-me de consultar o horóscopo, foi o que foi. Isso, sim, é que foi um erro tremendo. E nem precisava de comprar o jornal. Bastava abrir umas das ‘milhentas’ páginas da Internet dedicadas ao assunto. Devia ter feito menos ‘FreeCells’.
E, pior que isso, é o facto de já ter havido prenúncios negativos na semana anterior.
Estava eu, salvo erro, na zona de Vila Franca de Xira, ou da Arruda dos Vinhos. Isso mesmo! Na rotunda que se segue à saída da A10 para Arruda dos Vinhos, havia uma espécie de ‘operação stop’ da Brigada de Trânsito (acho que já mudou de nome, mas eu faço justiça à sua antiga e apropriada designação).
Passei, sem que ninguém me mandasse parar, nem me desse grande importância Fui onde tinha de ir, fiz o meu trabalho e voltei. Também desta vez não me mandaram parar.
“Mas então o que é isto?!” – questionei eu – “Então, já não se liga importância aos camionistas?! É uma desconsideração…” Não era. Simplesmente, era sorte a mais.
Tendo em conta que, no Universo, tudo tende para o equilíbrio, eu devia esperar que funcionasse o mecanismo de compensação. E já tinha começado a funcionar. O meu chefe de serviço tinha-me dado as instruções: Iria carregar, segunda-feira, na zona de Valladolid, em vez de carregar no sábado em Portugal. Bem… se tinha de ser…
E lá segui para a morada indicada. Parei em Vilar Formoso, para fazer as compras do costume.
Rodava tranquilamente, perto de Salamanca, quando um desagradável aviso me apareceu nos instrumentos. Algo relacionado com os travões. Experimentei o respectivo funcionamento e, na falta de quaisquer sintomas estranhos, supus tratar-se do desgaste das ‘pastilhas’. Teriam de ser substituídas quando regressasse. De qualquer forma, na primeira paragem iria certificar-me.
Mas não fiquei totalmente tranquilo. Por isso, parei mesmo, e fui ver o que se passava. A coisa era muito pior: tinha ‘gripado’ os rolamentos da roda da frente do lado direito. Estava bastante quente, mas não fumegava. Foi por isso que não me apercebi. Teria visto o fumo pelo retrovisor.
Foi inesperado, por não ter havido nenhuns sintomas na direcção, nem ruídos estranhos, nada. Consultei o mecânico da empresa. Combinámos que eu iria, muito devagar, para uma estação de serviço, uns dois quilómetros mais adiante. Não podia ficar na auto-estrada, a menos que fosse de todo impossível sair dali.

… … …

Aqui, seguir-se-ia uma pormenorizada, mas fastidiosa, descrição das peripécias ocorridas durante o complicado processo de reparação. Mas resume-se no seguinte:
Veio o mecânico, de Portugal, três vezes. E não foram suficientes só por si, pois tivemos de ir, sexta-feira à tarde, a Guadalajara, buscar a última peça que faltava. Ou seja, a reparação durou uma semana, terminando às duas da madrugada, de sexta para sábado.
Mais valia que tivessem recorrido ao sistema de assistência em viagem. Ali mesmo em Salamanca, a menos de 20km, estava um representante da marca.
Forretices que se pagam caro!...

Uma semana inteira…´
O que é preciso é ter paciência.

… … …

Entretanto, acabo de verificar que a aplicação do plural (semanas), que fiz no início deste texto, foi mais do que premonitória.
Trocando por miúdos:
Fui então carregar o camião. A carga era um pouco diferente do que eu esperava. Era a granel, não deixava de ser um subproduto da exploração florestal, mas era outro diferente do habitual. Concretamente tratava-se das ‘aletas’ das pinhas dos pinheiros mansos, aproveitadas depois de retirados os pinhões.
Perguntar-se-á para que serve tal coisa. Em última instância, até serviria como combustível, mas não é o caso. Tem a mesma utilização que a casca dos pinheiros, que se aproveita do descasque dos toros, nas serrações. Depois de algum tratamento (separação ou calibragem) estes produtos são vendidos, a granel ou embalados, como matéria orgânica para adicionar aos terrenos agrícolas ou jardins, sendo que, neste último caso, também se usam com finalidades decorativas ou de isolamento.
A dificuldade estava na operação de descarga. O material, bastante escorregadio, tende a fazer enorme pressão no momento de abrir as cintas de fixação da lona. Só foi possível abrir o camião depois de algum esforço de imaginação (e também físico). Demorou imenso tempo.
Dirigi-me depois ao local da carga de retorno, a mais de cem quilómetros dali. A distância até nem é grande. Mas a carga era para o dia seguinte.
A coisa começava a complicar-se. Ficar para o dia seguinte traduz-se num atraso considerável. Estava a ficar em causa a possibilidade de descarregar na mesma semana. Mas ainda era possível.
Iniciou-se então a carga, pelas seis da manhã (cinco, pela hora portuguesa). Tratava-se de sacos (big bags) com um pó industrial, de 500kg cada um, sobre paletes.
Quando estavam carregados não mais de quatro sacos, apareceu o responsável pelas cargas. Pôs-se a observar e fez questão de achar que o camião não tinha as condições para transportar a carga em segurança para Portugal. Tinha, segundo ele, um número insuficiente de barras laterais de contenção.
Fizeram-se algumas chamadas: quem se responsabiliza pelos eventuais danos, quem não… Três horas depois, veio a ordem: Desistir daquela carga. Ir a outro local, a mais de cem quilómetros, carregar bobines de papel para tipografia.
Depois, mais cento e tal quilómetros quase em sentido inverso, para acabar de carregar num entreposto logístico.
Estas cargas foram bastante rápidas, mas os percursos, sem serem demasiado lentos, implicaram muita precaução. Chovia e, com piso molhado, o camião vazio é um patim de gelo.
Mais pela tarde, já de regresso, era hora de ponta em Paris (para quem não saiba, é uma versão, tamanho gigantesco, dos nossos pacatos IC-19, 2ª Circular, ou VCI).
Resultado: descarga na segunda-feira. Alverca, Sintra, Odivelas. Nada mau, nada mau… Para quem podia descarregar em Leiria na sexta-feira à tarde…

… … …

Mas, quanto a este último parágrafo, já não me atrevo a fazer qualquer prognóstico. Senão, vejamos:

Este texto tem vindo a ser escrito ao longo de vários dias.
Quando o comecei, tinha em mente fazer uma narração das peripécias relacionadas com a avaria da roda e respectiva reparação. Acrescentaria algum comentário irónico sobre os imprevistos e sobre a atitude ‘forreta’ dos donos do camião, ou sobre a precipitação dos funcionários que não foram capazes de identificar com precisão quais as peças necessárias. E passaria a interessar-me por outro tema. Mas não é possível. A realidade encarrega-se de me abrir os olhos, sempre que cometo o deslize de prestar pouca atenção.
Esta manhã, bem cedinho, aí pelas cinco horas, levantei-me, disposto a partir para mais uma jornada, que me levaria até à zona de Vitória, País Basco.
Um estranho sossego envolvia todo o parque de estacionamento da área de serviço de Orléans. Nada de motores em funcionamento, prontos para arrancar, portas a bater, nada. Os únicos sons, meio abafados, provinham do trânsito da auto-estrada.
Então lembrei-me de que hoje é o 1º de Maio, feriado também aqui.
E em França, nos domingos e feriados, os veículos pesados de mercadorias não podem circular, salvo poucas excepções, como os que transportam produtos alimentares perecíveis, ou com alguma autorização especial, por motivos de força maior. O transporte que efectuo não se inclui nessas categorias. Só posso circular a partir da meia-noite, 23 horas pela hora portuguesa.
Já nem me apetece usar aquela expressão ‘é preciso ter azar’…
Eu queria ter um dia de descanso, sim, mas em casa. Aqui, sinto-me tão inútil e parado como o motor do camião.
Acho que já só vou descarregar na terça-feira. Mereço um fim-de-semana de dois dias, como toda a gente. E até tinha direito as dois!

… … …

Este último apontamento sugere-me uma reflexão, desta vez escrita, sobre o omnipresente protesto dos camionistas estrangeiros em França, em relação a esta proibição de circular.
É verdade que cada país da Comunidade Europeia tem o direito de regulamentar as actividades dentro do seu território, desde que isso não seja contra o ordenamento da própria Comunidade. Sendo esta uma situação possivelmente omissa em qualquer texto de Bruxelas, é fácil perceber que só é possível acatar as restrições. Infringir, significa pagar uma multa e parar na mesma. Continuar seria desobediência, que tem carácter mais grave.
Como fundamento para esta restrição, suponho que estejam questões relacionadas com a fluidez do tráfego, mais intenso nestas datas, pois não se vislumbram outras que pudessem incidir sobre os condutores estrangeiros (claro que os camiões franceses também estão abrangidos). Se se tratasse de uma forma encapotada de resolver um problema laboral interno, o caso mudaria de figura.
As autoridades francesas - claro! – estão-se completamente nas tintas para esta realidade indesmentível, que é a de que os condutores de fora não têm que estar sujeitos a cumprir, por indirecta obrigação, um feriado local (embora neste caso até seja feriado na maioria dos países do Ocidente).
Houve um tempo em que era permitido circular, quando de regresso aos países de origem. Mas os espertalhões abusavam, para fazer outros percursos. Em consequência, paga o justo pelo pecador.

… … …

Agora, um outro apontamento, este sobre a ‘nefasta’ influência dos camiões no tráfego.
Aparentemente, a existência de camiões circulando lentamente entope as estradas, não permitindo aos condutores dos ligeiros andar à vontade.
Aparentemente.
Na verdade, os camiões andam um pouco mais devagar e, por serem extremamente compridos, ocupam muito espaço e dificultam as ultrapassagens. Tudo isso é verdade.
Mas já alguém pensou – nesta época em que, felizmente, se aposta na diminuição de velocidade como forma de diminuir o risco e a gravidade dos acidentes – que os camiões são, por isso mesmo, agentes moderadores dessa tão apetecida quanto mortífera velocidade?