"O morto era tão boa pessoa…"
Se há situação capaz de despertar a hipocrisia, é aquela em que é preciso fazer referência a alguém que faleceu, especialmente na presença daqueles que lhe eram próximos, e tanto mais quanto maior tiver sido essa proximidade. Só uma besta irá dizer ao órfão "o teu pai era um vigarista", ainda que ele o fosse tanto ou mais que alguns que a gente conhece. Mesmo em relação aos amigos do defunto, existe a tendência para não explorar demasiado os defeitos que eram do conhecimento de todos, por receio de ferir susceptibilidades. Haverá logo um que interrompa: "Deixa-o lá descansar em paz!".
Só que algumas pessoas exageram. De um momento para o outro, o defunto passou a ter qualidades que em vivo ninguém lhe havia encontrado. Defeitos, nem um.
Bom, mas qualidades são qualidades, defeitos são defeitos. Outra coisa são os actos praticados. O que se diga de que o defunto era isto ou era aquilo pode sempre ser relativizado em função da tendência para realçar o bom e atenuar o mau em relação aos mortos. As boas acções serão agora enfatizadas. Mas os danos causados não são facilmente esquecidos por quem os sofreu. Quem tem razões de queixa até pode perdoar, mas não esquece. Se forem danos materiais concretos, a situação pode mesmo complicar-se e patrimónios e heranças chegarem a ser responsabilizados por ordem de quem de direito. Mas essa já é outra questão.
É certo que, para simplificar as relações, as más condutas devem ser enterradas juntamente com quem as teve. Uma das razões para trazer a lume os maus actos de alguém é a possibilidade de que isso sirva para que se emende. Ora, se há um tipo de gente que não tem emenda — mas não tem mesmo — são os mortos.
No entanto, se o relembrar dos defeitos ou má conduta do morto servir de lição para os vivos, porque não falar deles? E então se tiverem contribuído, ou se suponha que contribuíram, para a morte dele, fica encontrada razão de sobra para os relembrar.
Soube recentemente da morte, ocorrida já há alguns meses, de uma pessoa que não conhecia pessoalmente — apesar de ser um colega de profissão — mas apenas através do contacto mais ou menos virtual de um fórum. Ele era o administrador do fórum e eu um membro não muito antigo. O homem tinha o hábito de se referir de forma que eu considerei despropositada às opiniões que não eram coincidentes com as suas. Toda a gente sabia que assim era, mas raros se atreviam a expressá-lo, para evitar represálias ou até mesmo chatices menores. Diz o povo que por pouco se começa... Afinal, o homem era o dono daquele espaço. Quem não está bem muda-se. E foi isso que aconteceu. Quando a coisa passou dos limites, eu bati com a porta e ele, depois disso, ainda a fechou à chave. Não sem antes ter ouvido o que havia para dizer. As verdades às vezes doem.
Para além disso, como todo o pequeno rei, ele tinha a habitual corte de intriguistas e de graxas. Sempre que ele levantava a voz contra alguém, lá vinha, solícito, o coro dos indignados ajudar. Também havia o grupo daqueles que se dedicavam a espalhar veneno. Há sempre. Uma insinuação aqui, uma resposta torcida acolá...
Felizmente, também existia quem tentasse sempre solucionar divergências (esses serão sempre bem lembrados).
Neste caso, o morto — a quem verdadeiramente nunca conheci — possivelmente até era mesmo boa pessoa. Não gostava era de ser contrariado nem sabia muito bem lidar com isso. As polémicas pareciam incomodá-lo bastante.
O que eu agora não vou fazer , como em algum momento posso ter chegado a pensar, é dirigir-me àquela comunidade de colegas ou ex-colegas para lhes dar os pêsames, que são sinceros. Os sensatos iam compreender, mas o grupo dos venenosos iria ver nisso uma provocação.
"Não batas a portas com que bateste" — disse alguém com razão...
Que descanse em paz.
(O falecido, porque os tais hão-de continuar como de costume. Mas não perdem pela demora: também vão, também iremos, quando chegar a nossa vez).